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Bom selvagem, mau selvagem

O imaginário brasileiro sobre o índio oscila entre os extremos de duas visões herdadas da filosofia europeia. Ele é “puro” ou “atrasado”?

Admiração e desprezo, encantamento e repulsa. Os mesmos sentimentos dos portugueses que primeiro se depararam com um grupo tupinambá na costa de Porto Seguro, há mais de 500 anos, perduram ainda hoje. Do mais odiento dos fazendeiros ao mais diligente dos antropólogos, compartilhamos doses variadas dessa ambígua impressão sobre os índios brasileiros.
Pode-se argumentar que o encantamento e o respeito vêm se impondo nas últimas décadas. Provas disso seriam a Constituição de 1988, a extensão de terras demarcadas, o crescimento demográfico indígena, a participação do índio no panorama político-cultural brasileiro. Finalmente aprendemos a respeitar o índio? Tal certeza se esvai quando, na menor confusão que surge na mídia – disputa de terras, atitudes beligerantes contra invasores, assassinatos de índios e por índios – levantam-se as suspeitas antigas: os índios, afinal, são gente inconfiável, incontrolável... “incivilizável”!
Foi pelo espanto que começou a ser elaborada a visão sobre os índios. Cartas de Américo Vespúcio se difundiram pela Europa desde sua publicação, em 1512. Lá estava o encantamento e a repulsa pelo índio, sua nudez confiante, seu destemor, seu “comunismo primitivo”, mas também sua crueldade, sua inconfiabilidade e o mais abominável de todos os seus costumes: o canibalismo.
A partir de então, muitos visitantes se arriscaram a escrever sobre os índios que viviam no Brasil. No entanto, foram dois pensadores que nunca conviveram com os índios que escreveram as obras mais influentes do século XVI. O teólogo e humanista inglês Thomas Morus publicou em 1516 aquele que seria um dos mais importantes livros de todos os tempos: Utopia. Trata-se de uma descrição conjectural de um não lugar, numa ilha do Atlântico Sul, com uma baía esplendorosa e ao fundo uma cadeia de montanhas. Ali viveria um povo diferente: homens e mulheres solidários uns aos outros, sem diferenças sociais ou econômicas, decidindo os assuntos políticos em coletivo. De onde Morus havia tirado as informações? No prólogo, ele relata que conversara com marinheiros irlandeses que haviam estado no Brasil e lhe contado detalhes sobre o povo que lá vivia: eram os tupinambás. Foi esse povo o modelo para a obra que iria influenciar todo um sonho utópico do Ocidente.
Em Paris, na década de 1560, alguns tupinambás foram trazidos da Baía da Guanabara para conhecer os franceses. Na ocasião, através de um intérprete, Michel de Montaigne indagou sobre seus costumes, sua visão de mundo e até suas opiniões sobre a França. No brilhante artigo “Dos canibais”, ele demonstra ter compreendido bem o significado do canibalismo tupinambá, que horrorizava os europeus: os inimigos aprisionados são honrados como grandes guerreiros ao serem mortos e devorados, transmitindo sua coragem aos vencedores. Sorrateiramente, Montaigne compara a prática com as guerras civis que estavam ocorrendo entre huguenotes e católicos franceses, e seus horrendos métodos para obter informações, castigar ou simplesmente torturar os inimigos mútuos – todos franceses. Corpos despedaçados, chumbo derretido derramado nos ouvidos, queima nas fogueiras. Quem é o selvagem nessa comparação? Montaigne sugere que a repulsa e as críticas a costumes diferentes brotam da visão interna de cada cultura, que pensa que os seus são os hábitos mais naturais e corretos – o que mais tarde a antropologia iria nomear de etnocentrismo. E foi assim que Montaigne semeou no pensamento ocidental a noção de relativismo cultural. Mais uma vez, a partir dos tupinambás.
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